nº 38 ano 10 | Setembro 2019
Matéria de Capa

Economia popular e solidária no Brasil urbano: as políticas e suas pesquisas

Por Luciana Corrêa do Lago

Buscamos nesse texto examinar as perspectivas políticas, os pressupostos metodológicos e os possíveis desdobramentos de duas pesquisas quantitativas promovidas nos anos 2000 por instituições públicas do país (SENAES e UFRJ), que tinham como intuito mapear e qualificar um conjunto de práticas que compõem o universo da economia popular no Brasil. Ambas as pesquisas foram concebidas segundo os princípios da economia solidária e fomentadas por uma aliança entre setores do poder público e organizações da sociedade civil empenhados em apreender de forma sistemática a realidade dos empreendimentos coletivos de produção, circulação e consumo de bens e serviços, no sentido de fortalecê-los e difundi-los por meio de políticas públicas específicas. Serão analisados o segundo “Mapeamento da Economia Solidária no Brasil” (2009/2013), realizado pela SENAES, e a pesquisa-ação “A Economia Solidária em Territórios Populares” (2011), desenvolvida pelo Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC) da UFRJ, em quatro comunidades no Rio de Janeiro, no âmbito do projeto RIO ECOSOL. As ações do RIO ECOSOL englobavam, além da pesquisa participativa sobre as atividades socioprodutivas locais, atividades de formação em economia solidária e a implantação de um banco comunitário.

A primeira motivação foi compreender os pressupostos analíticos dessas duas pesquisas e as escolhas conceituais e metodológicas daí resultantes. Isto serviria de subsídio para a construção do nosso projeto de pesquisa (ver nota 3) sobre economia popular que também se orientava pelos princípios da economia solidária, mas partindo de outra matriz de análise. A unidade básica da nossa investigação não seria o empreendimento econômico popular, mas a unidade doméstica. Essa escolha será esclarecida mais adiante. O objetivo central do presente texto era, portanto, desenvolver uma crítica às duas pesquisas no sentido de suas limitações para desvendar a complexidade da economia popular, ou seja, para desvendar a imbricação entre os empreendimentos populares, solidários ou individuais, e as práticas cotidianas de reprodução das famílias dos trabalhadores. No entanto, à medida que a estrutura da análise e dos questionários e os resultados apresentados iam sendo apreendidos, a motivação inicial foi ganhando novo sentido. Nos deparamos com ricas e inéditas descrições substantivas de um amplo conjunto de práticas econômicas populares que nos levou a refletir e mesmo ampliar as questões que estruturavam o nosso projeto de pesquisa.

Assim sendo, o que será apresentado a seguir é um “diálogo” com os resultados empíricos alcançados pelos levantamentos realizados pela SENAES e pelo SOLTEC, lançando mão de novas perguntas que nos permitam ampliar a compreensão das experiências populares em questão. Fomos armando alguns possíveis desdobramentos que incorporassem ou aprofundassem determinadas temáticas, em especial, a do território e a da vida doméstica. Entendemos que para avançarmos no projeto de uma outra economia é necessária a compreensão da territorialidade das trocas econômicas nas suas diferentes escalas. As unidades domésticas estão enraizadas em seus espaços cotidianos, muitas vezes com poucas conexões extra bairros, e a racionalidade que orienta a economia doméstica se transfere às diferentes formas coletivas de organização do trabalho.

O estímulo a essa perspectiva analítica partiu das formulações, que entendemos como complementares, de Jose Luís Coraggio (2000; 2005; 2009) e de Immanuel Wallerstein e Joan Smith (1992) sobre as limitações do pensamento econômico formal ao abordar as práticas econômicas de reprodução da vida social. Embora as questões formuladas pelos autores nesses trabalhos não estejam num campo de diálogo direto, encontramos uma convergência de princípios analíticos no que se refere às limitações mencionadas. Há em geral nas pesquisas sobre o tema um reducionismo do universo da economia popular às atividades mercantis comumente chamadas de atividades geradoras de renda. Não se reconhece o significado econômico de inúmeras práticas produtivas e reprodutivas nutridas por recursos não monetários. E foi a partir do reconhecimento dessas práticas não monetárias como práticas econômicas que foi desenvolvida a análise das duas pesquisas.

Primeiramente serão expostas as ideias centrais dos autores sobre o tema do trabalho para a reprodução da vida e, em seguida, buscaremos situar as pesquisas SENAES e SOLTEC nos contextos político e econômico a partir do final dos anos 1990, quando a economia popular se tornou objeto privilegiado de políticas públicas. Com esse quadro de referências metodológicas e políticas, passaremos ao diálogo com as duas pesquisas.

Economia popular e solidária no Brasil urbano: as políticas e suas pesquisas
Luciana Corrêa do Lago
lulago@observatoriodasmetropoles.net
é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Professora aposentada do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), pesquisadora da rede nacional Observatório das Metrópoles e professora permanente no Programa de Pós-Graduação de Tecnologia para o Desenvolvimento Social do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES)/UFRJ.